segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A alegria triste de Ana Vitória


O dia exatamente eu não recordo. Mas a imagem é difícil esquecer. Faz mais ou menos um ano, conheci Ana Vitória na emergência do Instituto Materno Infantil (Imip), no Recife. Tinha a pele de cobra e os olhos comidos pela fome. Era tudo, menos uma menina. Parecia bicho com o corpo coberto de feridas. Havia chegado ali nos braços da mãe, mulher negra e analfabeta. Vinha do Sertão, terra fértil em gerar crianças desnutridas. Ana Vitória enganou a morte, mas não escapou do ferrão da fome. Ficou cega. Há três semanas, reencontrei a menina na periferia de Floresta, cidade sertaneja. A mãe me mostrou suas mãos. A da esquerda faltavam dois dedos. “Bichinha, levou um choque num fio descoberto. Precisou amputar”, justifica, meio sem jeito. Não consegui pensar outra coisa: “Que carma”. Ela só tem 2 anos e 3 meses. Mas vem uma brincadeira, depois outra, e a menina sorri. Seu riso ilumina a sala. Ana Vitória é tudo, menos tristeza.
A mãe sonha com olhos de vidro. Sonha ainda mais alto e deseja uma córnea que devolva à filha a visão roubada pela miséria. “Quem sabe, ela consegue um doador”, pensa, sem nem saber dizer se o nome da menina já foi colocado na fila de espera por um transplante. Ela acha que não. Provavelmente não. Enquanto a mãe imagina, a realidade segue negando a Ana Vitória o mínimo. Falta dinheiro para comprar o colírio que ajuda a manter seus olhos cegos lubrificados. O remédio custa R$ 14. Josivânia dos Santos, 24 anos, não tem. Mas se recusa a pedir. “Quando receber o dinheiro dela, vou até a farmácia e compro.”

Por ironia, dessas que a vida gosta de pregar, o alimento e o remédio de agora vêm da falta de comida de antes. É da cegueira de Ana Vitória que a família sobrevive. É a lógica do absurdo. A aposentadoria precoce afasta os dias de fome que fizeram a menina crescer como se fosse velha.

Os dedos perdidos repetem o inaceitável. Agora às avessas. Foram os meses de internação no Imip que livraram a menina de ser mais uma numa terra de anjinhos. Dessa vez, a amputação escancara o descaso. Ana Vitória levou o choque no fio descoberto quando estava sozinha em casa, enquanto a mãe havia ido ao supermercado. Levada ao hospital público de Floresta, foi atendida por um médico que fez um simples curativo, disse que estava tudo bem e a mandou de volta para casa. Dias mais tarde, a mão começou a feder. Os dedos estavam apodrecendo. Quando a mãe se deu conta, não havia mais nada a fazer.

Não faz nem dois meses que ela se viu, de novo, marcada pelo círculo trágico que teima em atropelar seu caminho. Mas a menina dá as costas para a fatalidade. Parece nem lembrar que já teve os cinco dedos. Usa os três que lhe restaram como se, desde sempre, só eles tivessem existido. Carrega para cima e para baixo um boneco branco que se chama Pretinho. É seu companheiro inseparável. Eu não o reconheço, mas a mãe faz questão de lembrar. “Ela ganhou naquela vez que o Exército veio aqui. A senhora não lembra? Nunca largou dele”, diz Josivânia, se referindo ao dia em que a reportagem do Jornal do Commercio esteve em sua casa para entregar roupas e brinquedos arrecadados para Ana e outras tantas crianças, cujas histórias de fome foram contadas no caderno especial publicado pelo JC, em setembro de 2008.

Ver a menina correndo pela sala, gordinha e com o cabelo cheio de cachinhos, faz aqueles dias envergonhados parecerem muito distantes. “Já sofri demais com ela. Às vezes, ela tem uma dor de cabeça porque o olhinho fica pulado para fora, acho que mexe com todas as veias. Mas quando penso em tudo o que aconteceu, nem acredito que ficou assim, tão linda e feliz”, emociona-se Josivânia, abrindo um sorriso tão poderoso quanto o da filha.
Quando fizer 7 anos, Ana terá que operar o umbigo. Ela carrega uma hérnia que, por enquanto, diz a mãe, os médicos falaram que não adianta mexer. Um pouco antes, quando fizer 6 anos, terá que sair da creche e ir para uma escola aprender a ler e escrever. A mãe teme pelo futuro da filha. “Será que vou encontrar um colégio para deficientes visuais aqui, no Sertão, sem dinheiro nem conhecimento?”, angustia-se. No colo de Josivânia, Ana nem sabe o que é futuro. Só manda beijos e agarra Pretinho pelos pés. Ela faz isso. Faz milagre. E reescreve todos os dias sua triste história feliz.

Ciara Carvalho
Do Jornal do Commercio

Um comentário:

Unknown disse...

Como está essa menina guerreira,hoje será que alguém pode me dizer?