domingo, 22 de novembro de 2009
O Lampião tupinambá
O riso é estridente, quase debochado. Enquanto ri, Rosivaldo Ferreira da Silva, de 35 anos, chacoalha todo o corpo, a fileira de dentes de boi que carrega no pescoço e o cocar de penas na cabeça. A irreverência e a simpatia contrastam com a descrição feita pela Polícia Federal das ações e do caráter de Rosivaldo, ou Cacique Babau, como ele é conhecido no sul da Bahia. Sobre a mesa do delegado federal Cristiano Barbosa, a pasta intitulada Dossiê Cacique Babau dá a dimensão das façanhas atribuídas a Rosivaldo. São ao menos dez inquéritos, em cerca de 500 páginas, que incluem acusações de sequestro, furto, invasão de propriedade privada, incêndio criminoso, porte ilegal de armas, ameaça, formação de quadrilha.
Babau é um dos líderes do grupo de 3 mil pessoas que se autointitulam tupinambás, os primeiros índios com quem Pedro Álvares Cabral travou contato ao desembarcar em terras brasileiras. Desde 2004, ele e seu bando já invadiram 20 fazendas na região da Serra do Padeiro, localizada entre os municípios baianos de Ilhéus, Buerarema e Una. De acordo com a Polícia Federal, os índios usam armas e recorrem à violência em suas invasões. Nos últimos cinco anos, Babau passou a ser considerado por autoridades locais um inimigo público no sul da Bahia.
Babau dá risada quando confrontado com sua ficha policial. Nega que ande armado ou promova a violência, mas se deleita ao lembrar que os tupinambás ficaram conhecidos como um povo guerreiro e canibal. “De vez em quando a Polícia Federal vem aqui buscar um cadáver. Não encontra nada, só a gente comendo carne assada. Mas é carne de animal. Nossos antepassados faziam prisioneiros para virar almoço. É por isso que eu não sequestro ninguém. Se sequestrar, a gente vai ter de comer”, afirma Babau, às gargalhadas.
Por sua ótica, as invasões são “retomadas” de áreas que eram terras dos indíos até 1500 e foram usurpadas pelos brancos ao longo da história do Brasil. Para seus seguidores, estudiosos, autoridades e até mesmo rivais, Babau é uma espécie de versão cabocla de Lampião, o histórico chefe do cangaço. No sul da Bahia, diz-se que a cabeça de Babau valeria R$ 30 mil.
Em novembro do ano passado, a Polícia Federal tentou prender Babau. Escalou 120 homens, munidos de balas de borracha e gás lacrimogêneo. Foi recebida a pedradas. No fim da operação, a PF não prendeu o cacique e ficou encurralada na mata. A mando de Babau, os índios bloquearam as estradas de terra com troncos de árvore. “Nós chegamos à tribo ostensivamente armados, e o Babau nos enfrenta”, diz, abismado, o delegado da Polícia Federal Cristiano Barbosa. Em junho, em outra operação, policiais federais foram acusados de torturar quatro índios do grupo de Babau. O inquérito, conduzido pelo delegado Barbosa, concluiu que os policiais não cometeram crime.
Boa parte dos índios atribui às ações de Babau a finalização, em abril, do relatório da Fundação Nacional do Índio(Funai) que dá aos tupinambás um território de 47.376 hectares. A área se estende da Serra do Padeiro ao litoral baiano e inclui centenas de fazendas, hotéis, cemitério, além de quase metade da Vila de Olivença, uma das primeiras concentrações urbanas do Brasil, em Ilhéus. Se for homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que pode acontecer em alguns meses, a reserva indígena dos tupinambás será 43% maior do que a cidade de Belo Horizonte.
A possibilidade de demarcação inflamou a identidade indígena, oculta até recentemente
Babau não tem apenas um robusto prontuário policial. A escola e os fornos de farinha da aldeia, construídos com financiamento público, são exemplos de sua liderança e de sua capacidade de articulação. Essas habilidades foram desenvolvidas longe das matas da Serra do Padeiro. Babau, cujos traços faciais revelam mais sua ascendência negra do que a indígena, faz parte da primeira geração com ensino médio de uma família que vive do plantio de mandioca, banana e cacau em um pequeno sítio. Às vésperas da comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, Babau foi para a escola em Santa Cruz Cabrália, primeiro ponto do país onde os portugueses pisaram. Lá, descobriu a América: algumas ONGs o fizeram ver que a ascendência indígena poderia garantir-lhe direito às terras onde nasceu. Babau engajou-se em fazer a Funai reconhecer seu grupo como os Tupinambás de Olivença.
O reconhecimento veio em 2002. De lá para cá, os tupinambás, que, de acordo com os documentos oficiais e a memória de agricultores da região, estavam desaparecidos havia mais de um século, saíram do armário. Munidos de cocar e de uma cópia da Constituição de 1988 (que reconhece os direitos dos indíos sobre as terras que tradicionalmente ocupam), começaram a pleitear áreas em Ilhéus e na região e a se multiplicar. De acordo com a Funai, em 2004 havia 3 mil tupinambás na Bahia. Em 2009, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) registrou 4.729 tupinambás, um crescimento de 58% em cinco anos. “Nem coelho consegue se reproduzir tão depressa. Isso é formação de quadrilha”, diz Luiz Henrique Uaquim, presidente da Comissão de Pequenos Agricultores da região. Uaquim desconfia que militantes sem-terra e agricultores estão engrossando as invasões indígenas. O trabalhador rural João Marques confirma a suspeita. “Babau me chamou para entrar no movimento. Disse que eu tinha cara de índio. Mas eu não quis”, diz Marques, que garante não ter ascendência indígena. Babau nega ter inflado seu grupo, mas admite ter recebido propostas para fazê-lo. E acusa outros caciques de aceitar filiar sem-terra aos tupinambás. É possível que isso tenha ocorrido. O recenseamento da Funasa é feito com base nas informações dadas pelos caciques sobre suas aldeias. Para ser considerado índio basta que o sujeito se autodenomine como tal. “Nasci e cresci aqui, e só nos últimos anos começou a aparecer índio para todo lado”, diz Alcides Kruschewsky (PSB-BA), vereador em Ilhéus. “Sou descendente das mesmas pessoas que os que se dizem índios são. Esse grupo achou um argumento infalível para conseguir terra: dizer que é índio.”
Mariana Sanches (texto) e Marcelo Min (fotos), de Ilhéus, BA(REVISTA ÉPOCA)
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