domingo, 23 de agosto de 2009

A escolha de Sofia // Médicos doentes


A medicina é feita de curas, perdas e milagres. Em meio a essa rotina de emoções, os médicos adoecem cada vez mais. Por escolhas que fazem na própria vida e por escolhas que interferem na vida dos outros.
José Demir Rodrigues, da Paraíba, diz que os colegas médicos devem reconhecer quando precisam de ajuda. Foto: Ovidio Carvalho/ON/D.A. Press
É essa realidade que o Diario de Pernambuco vai trazer na série A escolha de Sofia, um retrato de como está a saúde física e mental desses profissionais.

O nome foi escolhido por ser uma referência ao livro de William Styrone, a obra mais citada por eles em dois meses de entrevistas. Se a protagonista dessa obra literária (Sofia) teve de escolher qual dos filhos deveria viver, num campo de concentração de Auschwitz, na Alemanha, eles dizem ser obrigados a tomar decisões semelhantes, quase todos os dias. E isso traz consequências negativas, às vezes invisíveis.A pressão rotineira sobre o profissional estoura na família, no paciente, provoca uso de drogas e o surgimento de várias doenças.

A série retratará os problemas enfrentados por boa parte dos 56.669médicos que atuam do Nordeste, onde 93,5% da população é usuária do Sistema Único de Saúde, contra 72% do Sudeste. Sofrem mais os que trabalham no SUS. Aqueles que cobrem a falta dos colegas e do sistema, que se dedicam ao que há de mais bonito na profissão: salvar o próximo. Durante oito dias, o Diario vai mostrar como está a vida profissional e emotiva daquele que deveria cuidar do próximo, revelar os problemas e apontar soluções defendidas sob a ótica deles. Uma saída para que eles possam, um dia, servir ao SUS sem a obrigação de ter de repetir A escolha de Sofia.

Por mais saudável e onipotente que pareça, o médico não está imune às fugas comuns da sociedade. Problemas pessoais somados a expectativas frustradas, péssimas condições de trabalho e jornadas exaustivas levam profissionais da área a buscar o divã ou escapes nada convencionais, como drogas e uso abusivo de medicamentos. Não é diferente da população em geral. Talvez seja mais grave, no entanto, por se tratar de um profissional que tem a missão de passar confiança e cuidar da vida. Esse delicado tema - difícil de ser exposto por pessoas que dependem da imagem positiva - será abordado nesta primeira matéria da série A escolha de Sofia.

O vício debilita qualquer indivíduo, seja ele médico ou não. O risco de dependência química duplica, entretanto, quando uma pessoa tem algum distúrbio psiquiátrico, como depressão e ansiedade. É justamente isso que preocupa a categoria, uma vez que 44% dos médicos no Brasil admitem ter um desses distúrbios, em dados do livro A saúde dos médicos do Brasil. O número é 10,6% maior que o da população brasileira em geral, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM).

Estados do Nordeste não diferem deste contexto. Em Sergipe, por exemplo, cerca de 32 entre 100 médicos (31,8%) já usaram algum tipo de droga lícita ou ilícita, de acordo com a professora de Ética Médica da Universidade Federal de Sergipe, Déborah Pimentel. Um drama que, segundo ela, repete-se nos outros nove estados da região. Há cerca de três anos, por sinal, o Cisam, conhecido como a maior maternidade de Pernambuco em número de atendimentos, teve de demitir anestesistas por uso de Dolantina no trabalho. Derivado da morfina, o remédio normalmente é usado para deixar o paciente "zen" e dopado, semelhante ao que foi injetado no cantor norte-americano Michael Jackson. Só que termina sendo autoaplicado por alguns médicos durante os plantões, por ser de fácil acesso.

Anestesista na Paraíba há 31 anos, José Demir Rodrigues viu alguns de seus colegas se entregarem ao vício dos remédios, por falta de preparo emocional para suportara pressão do trabalho. Ele não condena, mas pode se considerar um exemplo nesta função, vista como uma das mais vulneráveis ao consumo de Dolantina. O doutor desempenha um dos papéis mais estressantes da medicina, uma vez que cuida de todos os sinais vitais de um paciente.

José Demir é o único anestesista em cadeiras de rodas que está em atividade no Brasil, depois de perder o movimento das perdas num acidente de carro há 24 anos. Ele nunca se aventurou no uso de opióides. "Tenho hipertensão arterial, estresse emocional por conta da sobrecarga de trabalho, mas procuro resolver os problemas de outras formas. É importante que o médico reconheça quando precisa de ajuda e, se for o caso, peça afastamento do trabalho".

Médicos ativos no Nordeste

Alagoas
3.578

Bahia
15.209

Ceará
8.389

Maranhão
3.959

Paraíba
4.452

Pernambuco
11.920

Piauí
2.696

Rio Grande do Norte
3.910

Sergipe
2.556

Fonte: Conselho Federal de Medicina (Dados de agosto de 2009)

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